segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sociedade civil critica urgência para votação do pacote "anticrime"

Integrantes da sociedade civil e da oposição ao governo Bolsonaro (PSL) questionam a possibilidade de votação de urgência para o texto produzido pelo grupo de trabalho (GT) que analisou, na Câmara dos Deputados, mudanças na legislação penal e processual penal. O material inclui trechos do Projeto de Lei (PL) 882/2019, uma das propostas do chamado pacote "anticrime", do ministro Sérgio Moro, e dos PLs 10.372 e 10.373, de autoria do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Uma articulação de parte dos deputados da Casa atua para aprovar o regime de urgência para o texto ainda esta semana. Produzido na ultima quarta-feira (30), com o encerramento dos trabalhos do grupo, o documento final do GT é um texto alternativo ao parecer do relator, deputado Capitão Augusto (PL-SP). "Não gosto muito do regime de urgência pra legislação penal, porque parece que ela sempre é regime de urgência. Aí vem uma medida muito impactante, e às vezes isso não tem dado resultado. Acho que esses projetos não mereciam urgência. Devem ter a tramitação ordinária, clássica, com a devida ponderação, porque aí cada vez mais se amadurecem as questões", argumenta o defensor público Pedro Carriello, do Rio de Janeiro , membro da campanha “Pacote Anticrime: uma solução fake”, formada por diferentes entidades e especialistas. Nos bastidores, deputados avaliam como inevitável a aprovação de urgência para a matéria, que tem o apoio da bancada da bala e de outros parlamentares. Com uma configuração de forças favorável à medida, a tendência é que ela dispute os holofotes, nos próximos dias, com as demais pautas que incendeiam o jogo político, como é o caso dos desdobramentos do caso Marielle. Durante os sete meses de debate no GT, a matéria esteve cercada de polêmicas, o que fez com que o prazo inicial de 90 dias do grupo fosse prorrogado mais de uma vez. No rol das controvérsias, figuraram críticas a diferentes medidas propostas por Moro. Entre elas, tiveram destaque a legalização da prisão após condenação em segunda instância e o excludente de ilicitude, que liberava de punição policiais que matassem em serviço quando estivessem sob o que o projeto do ministro classifica como “medo, surpresa ou violenta emoção”. Esses dois pontos estão entre os trechos que foram rejeitados pelo colegiado. “Acho que a proposta original do Moro sai transformada para melhor no que diz respeito à perspectiva da sociedade”, avalia o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), um dos três parlamentares de oposição que compunham o GT. Também foram aprovadas novas normas para os acordos de colaboração premiada que se dão no âmbito da Lei das Organizações Criminosas, com ênfase para o fato de que as delações deverão ser usadas apenas como instrumentos para obtenção de provas, não devendo ser utilizadas como prova única para incriminar alguém. O instrumento é um dos mais alvejados entre os utilizados pela operação Lava Jato, que dividiu o país entre defesas de caráter punitivista ou garantista. "A natureza do pacote era autoritária, com inúmeras medidas inconstitucionais. Então, a primeira coisa que nós evitamos foi deixar prosperar um pacote autoritário e inconstitucional", considera o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), também do colegiado.  A oposição comemora ainda a retirada de outros pontos que estavam em discussão no colegiado, como o chamado plea bargain, instituto do direito estadunidense que prevê penas mais brandas para réus confessos em troca de estes não serem submetidos a um processo judicial. A proposta de instituição da modalidade – que trata de um acordo entre acusado, juiz e Ministério Público –, no entanto, não foi engavetada. Ela deverá ser avaliada agora por outro colegiado, a comissão que estuda mudanças no Código de Processo Penal (CPP).  O GT também incorporou ao relatório mais de dez medidas que não constavam nas propostas de Moro e Alexandre de Moraes. Uma delas é a criação do chamado “juiz de garantias”, que consiste na existência de um magistrado para atuar exclusivamente na fase pré-processual. Segundo a proposta, ele deve encerrar sua participação no processo quando for proposta a ação penal, fase a partir da qual a competência passa a ser do juiz natural. A ideia é evitar pré-julgamentos e eventuais contaminações que possam prejudicar o réu. “O juiz do inquérito tem que tomar algumas medidas, como quebra de sigilo, busca e apreensão, e de repente ele acaba sendo contaminado por essas provas, então, ele não pode ser o mesmo juiz do processo, de quando é oferecida a denúncia. Isso me parece um avanço significativo no sistema brasileiro de hoje”, avalia Pedro Carriello. 

O relatório que recebeu aval do GT também é alvo de críticas. Uma delas trata do aumento do tempo máximo de cumprimento de pena, que passa de 30 para 40 anos. Pedro Carriello classifica a alteração como um “retrocesso” porque favorece a lógica do encarceramento – tema em que o Brasil é destaque mundial, com cerca de 812 mil presos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de julho deste ano. “É uma perda. Mais uma vez, a gente cai um pouco na velha ideia de que, prendendo mais e por mais tempo, combate-se o crime. Isso é um dado que a própria ciência já evidenciou que não traz resultado no combate à violência”, afirma Carriello. Outra crítica ao projeto diz respeito à criação de um banco de perfil genético para fichar informações de pessoas que passam pelo sistema de Justiça criminal. A assessora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) em Brasília, Raíssa Belintani, pontua que a medida pode ajudar a endossar o preconceito social que atinge ex-detentos. “É muito perigoso mapear pessoas dessa forma. A gente já sabe que quem passa pelo sistema criminal, especialmente pelo carcerário, já tem um estigma que não passa depois, que marca a vida pra sempre, que dificulta a reinclusão no mercado de trabalho, a retirada de novos documentos, etc. Vários direitos já ficam afetados. A partir do momento em que você faz um registro genético de que essa pessoa passou por ali, você está formalizando essa estigmatização. Isso é muito sério”, critica, acrescentando que o Estado não teria também condições estruturais de efetivar a medida.  O defensor público Pedro Carriello observa que a mudança pode vir a ser alvo de questionamento no STF. Ele pontua que a Lei 12.654, vigente no país, sujeita a uma identificação genética somente os condenados por crimes dolosos de natureza grave contra pessoa ou por crimes hediondos, como homicídio qualificado e estupro.  A norma atual não especifica se a regra deve ser aplicada exclusivamente para processos com trânsito em julgado, o que faz com que seja utilizada em casos de condenados após a primeira ou segunda instância. Por conta disso, a lei é hoje alvo de disputa no STF, em meio às intensas controvérsias que cercam o tema da presunção de inocência. A norma aprovada pelo GT, proposta pelo ministro da Justiça, endurece a aplicação, prevendo expressamente que a medida possa ser aplicada antes do trânsito em julgado.  “O Moro colocou isso no crime doloso, sem exigir nem violência grave, ou seja, até um furto, que é um crime sem violência, pode ser enquadrado, ou casos de estelionato e batida de trânsito com danos. Eu acredito que essa matéria vai desaguar no Supremo porque até mesmo a legislação atual, que não é tão rígida quanto a proposta por ele, já está em questionamento”, projeta Carriello.

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