domingo, 5 de janeiro de 2020

Gestão renovada salva botecos tradicionais perto do fim no RJ

O cabrito —que, aliás, sempre foi cordeiro— foi se ressecando na mesma proporção em que a frequência minguou no Nova Capela. Quando os rumores de fechamento chegaram à crônica social carioca, coisa de um ano atrás, Antônio Rodrigues entrou em ação. Antônio, outro cearense ralador, já havia transformado o Belmonte —antes um botequim fuleiro no Flamengo— na maior rede de bares limpinhos e cheirosos do Rio.  No Nova Capela, ele pôs a cozinha nos trilhos. Deu um tapa discreto no ambiente (o banheiro deixou de ser cenário de pesadelo). O cordeiro, ops, cabrito (R$ 95, para dois) voltou magnífico, úmido e nadando em alho frito. A freguesia retornou. No caso da Adega da Velha, os salvadores vêm da família Rabello —cariocas que geraram o monstro Galeto Sat’s. Sérgio Rabello pegou uma galeteria mediana em Copacabana e estabeleceu padrões de excelência mundial em coração de frango (R$ 34,40) e pão de alho (R$ 14). A metamorfose se repete na Adega da Velha, casa de comida nordestina que é gerida pelos Rabello desde setembro de 2018. O ambiente foi restaurado de forma discreta, mas determinante. “O salão foi climatizado com arcondicionado, o que é muito importante no Rio de Janeiro”, conta Raoni, filho de Sérgio, com carreira em administração hoteleira. Um dos desafios de Raoni foi preservar a parede azulejada do salão, da década de 1960, com várias peças quebradas. “Rodei a cidade toda atrás daqueles azulejos”, diz Raoni. Quando estava prestes a encomendar cópias, descobriu o que procurava no prédio em que mora. “Uma parede havia sido derrubada recentemente, e havia uma sobra daqueles azulejos.” A Adega fica numa região repleta de escritórios, o vale do Silício botafoguense. O investimento de Raoni foi direcionado para os pratos individuais para o almoço, o happy hour e a locação do espaço para eventos corporativos, as festas da firma. Clássicos como a carne-de-sol com mandioca (R$ 57) se mantiveram. Já o Adonis não tem uma localização tão privilegiada: sobrevive na Gaza benfiquense. Estive lá pela primeira vez em 2018, antes da troca de gestão. O cardápio grudava na mão, de tão ensebado; o banheiro estava infestado de insetos ortópteros vulgarmente conhecidos por baratas; as mesas, quase todas desocupadas no almoço de sábado. O botequim, referência em bacalhau desde 1952, ficou de fora de um guia que eu preparava para um grupo de restaurantes paulistas. Não havia a menor condição de entrar. A salvação chegou pelas mãos de João Paulo Campos, já então um importante empreendedor botequeiro na vizinhança. A Casa do Galeto, no bairro do Jacaré, era um caso de sucesso estrondoso que não repercutiu no Rio dos bem-nascidos —lugar que João conhece muito bem. Ele chegou do Ceará sem grandes qualificações para ser ajudante de garçom no finado Antiquarius, no Leblon, símbolo de comida portuguesa excelente e caríssima. Em menos de um ano, foi promovido a maître. Depois recepcionou os clientes do Fasano Al Mare, na avenida Vieira Souto. Chamado para trabalhar em Angola, ganhou muito dinheiro, mas perdeu quase tudo na farra quando voltou para o Brasil. Então decidiu empreender. Para montar a cozinha do Adonis —rebatizado como Velho Adonis—, João desfalcou a alta cozinha de Ipanema. Chamou outro Antônio Rodrigues, outro migrante do noroeste do Ceará. O Antônio em questão havia trabalhado por 26 anos como chef de cozinha do Satyricon, tido como o melhor dos melhores em frutos do mar no Rio. A fórmula Antiquarius + Fasano + Satyricon + Ceará + Adonis resultou no melhor e mais barato bacalhau que se pode comer no Brasil. Para dessalgar as toras de peixe seco, Antônio as deixa de molho por cinco a seis dias em água com cubos de gelo. Somado o gelo usado para resfriar a chopeira, o bar consome 80 sacos de 20 kg por semana. Os preços são um convite à esbórnia. Para quatro pessoas, o bacalhau à portuguesa (cozido, com batatas, brócolis, ovos, azeitonas, couve, uma montanha de alho frito e um oceano de azeite) custa R$ 180. O cardápio ainda tem o indecente polvo com bacon (R$ 28,90), as boas e velhas empadas (R$ 5,90) e uma dobradinha capaz de converter incréus (R$ 68,99, para dois). A chopeira do Velho Adonis ostenta uma torneira que está lá há 67 anos. Durante a reforma, a peça foi roubada. João Paulo surtou e só voltou ao normal depois de recuperar a criança em um ferro-velho. Caro(a) leitor(a): espero que você encontre na vida alguém que te ama tanto quanto o João ama seu boteco.

ONDE FICAM

Velho Adonis
R. São Luís Gonzaga, 2256, Benfica. Tel.: (21) 2026-4086
Sua assinatura vale muito.

Adega da Velha
R. Paulo Barreto, 25, Botafogo. Tel.: (21) 2286-2176

Nova Capela
Av. Mem de Sá, 98, Lapa. Tel.: (21) 2252-6228

Fonte: Folha de São Paulo - Domingo, 05 de janeiro de 2020.

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